Inspirado em “O gato preto”, de Edgar Allan Poe.
Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram. No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror - mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.
Coloco desde já que tenho alguns traumas com animais de estimação que adquiri grande zelo e carinho e depois sofri muito com a dor da perda. Cachorros, claro. Nunca simpatizei com felinos.
Naquela noite, parada a observar céu, comecei a refletir sobre os últimos acontecimentos. E, repentinamente, me subiu uma raiva intensa e incomum, talvez justificada pelo término do meu último relacionamento, pelo meu baixo desempenho acadêmico, meu insucesso teatral e outras decepções sofridas.
Essa raiva, portanto, me deu forças do além para desabar o mundo. E dessa vez, foi diferente. Não arranquei os cabelos, não molhei meu rosto com uma lágrima sequer e tampouco, me preocupei com isso. Podia me visualizar, mesmo sem espelhos, com uma cara tomada de frieza, sem expressão.
Sai caminhando devagar pelo corredor, à calada da noite, as luzes apagadas. Parei, bebi um gole d’água e sorri sinistramente, sozinha. Observo atentamente ao meu redor e vejo que vagarosamente sobe as escadas uma gata branca de incríveis olhos verdes.
Acaricio-a falsamente. E ainda invadida por tamanha raiva que nem me dou ao trabalho de descrever aos poucos, estrangulo-a.
Imóvel diante do cádaver do animal me deparo com a minha consciência analisando o que acabara de ter feito e decidindo o próximo ato. Mesmo não acreditanto que tenha sido algo pensado, eu ouso chutar o cadável que rola escada abaixo.
Corri por toda a casa muito mais nervosa que antes e a imagem da gata não saia da minha mente. Sabia que já havia visto o felino em algum lugar.
Alguns segundo me fizeram lembrar. Aquela era a gata do vizinho.
[...]
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